terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE URBANO E CULTURAL

I – INTRODUÇÃO:

A tutela do meio ambiente pela ordem jurídica na atualidade funda-se num conceito extremamente alargado de meio ambiente, que conjuga na noção de patrimônio ambiental nacional tanto o meio ambiente natural quanto o meio ambiente cultural.
Basicamente, o meio ambiente natural é aquele constituído pelos elementos que condicionam a vida num grupo biológico nos três reinos: animal, vegetal e mineral. Meio ambiente cultural é o que se constitui pela interação entre o ambiente natural e os espaços construídos ou edificados pelo homem.
Alguns autores, como José Afonso da Silva, preferem distinguir três classes de meio ambiente: I – o meio ambiente natural , constituído pelo solo, a água, o ar atmosférico, a flora; II – o meio ambiente artificial, constituído pelo espaço urbano construído e pelos equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes em geral); III – o meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico, que embora artificial difere do anterior pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou.
A proteção jurídica ambiental, como sabemos, teve início na preocupação com os recursos naturais, principalmente a água e o solo, embora dirigida apenas à conservação desses bens para a sua utilização pelo homem, sem levar em conta a necessidade da manutenção dos processos ecológicos em geral. Através de Acordos e Tratados buscou-se então, na ordem internacional , disciplinar a utilização dos bens da natureza para evitar os danos que se refletiriam na saúde, no bem-estar ou no patrimônio dos indivíduos em particular, estabelecendo-se regras para a apuração da responsabilidade individual ou coletiva, aos poucos direcionando as legislações no plano nacional, especialmente após a Declaração de Estocolmo de 1972, produzida em Conferência Internacional da ONU.

II – A PROTEÇÃO INTERNACIONAL DOS BENS CULTURAIS.

À medida que crescia a preocupação com os problemas globais que se relacionam com a sadia qualidade de vida e com a conservação do ambiente para as futuras gerações, que a Declaração de Estocolmo recomendava, a legislação ambiental passou também a orientar-se ao ambiente construído ou modificado pelo homem. Igualmente aqui a regulamentação do meio ambiente construído subdivide--se em vários ordenamentos jurídicos, a saber: saneamento, ordenamento urbano, atividades industriais, de transporte, lazer, habitação, artes e cultura, tendo como característica comum a regulamentação das diversas atividades humanas que participam da criação ou conservação do referido ambiente, na medida em que essas possam provocar impactos adversos seja para o meio natural seja para os seres humanos ou para o próprio ambiente criado. Daí a sua inclusão na categoria dos interesses metas individuais, denominados interesses difusos, que seguramente abrangem o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mencionado pela Constituição Federal no seu artigo 225.
Assim, estruturado como um direito fundamental da pessoa humana e também de toda a coletividade, o meio ambiente apresenta-se como um complexo articulado e harmônico de recursos naturais e de valores culturais, integrados na noção de patrimônio ambiental nacional, a ser preservado no interesse desta e das futuras gerações. Essa idéia foi consubstanciada em vários princípios e documentos internacionais que afirmam a necessidade de estabelecer-se um sistema de proteção da herança cultural e natural de valor universal , afim de proporcionar-se aos homens as condições de vida e bem-estar adequados, em ambiente sadio que eles devem sempre conservar e melhorar no interesse da sobrevivência da própria civilização.
Já antes mesmo da Declaração de Estocolmo, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), reunida em Paris, de 12 de outubro a 14 de novembro de 1970, em sua décima-sexta sessão, tinha aprovado uma Convenção sobre as medidas a serem adotadas para proibir e impedir a importação, exportação e transferência de propriedade ilícitas dos bens culturais, na qual, embora se estabeleça que a definição precisa dos bens culturais que merecem tutela é da competência de cada Estado, foi apresentada no seu artigo 1º uma lista, não exaustiva, dos bens que merecem a atenção da comunidade internacional e, portanto, o controle dos Estados para garantir a sua sobrevivência.
Para os fins dessa Convenção, a expressão “bens culturais”, significa quaisquer bens que, por motivos religiosos ou profanos, tenham sido expressamente designados por cada Estado como de importância para a arqueologia, a pré-história, a história, a literatura, a arte ou a ciência, e que pertençam às seguintes categorias:
a)as coleções e exemplares raros da zoologia, botânica, mineralogia e anatomia, e objetos de interesse paleontológico;
b)os bens relacionados com a história, inclusive a história da ciência e da tecnologia, com a história militar e social, com a vida dos grandes estadistas, pensadores, cientistas e artistas nacionais e com os acontecimentos de importância nacional;
c)o produto das escavações arqueológicas (tanto as autorizadas quanto as clandestinas) ou de descobertas arqueológicas;
d)os elementos procedentes do desmembramento de monumentos artísticos ou históricos e de lugares de interesse arqueológico;
e)antiguidades de mais de cem anos, tais como inscrições, moedas e selos gravados;
f)objetos de interesse etnológico;
g)os bens de interesse artístico, tais como:
1.quadros, pinturas e desenhos feitos inteiramente a mão sobre qualquer suporte e em qualquer material (com exclusão dos desenhos industriais e dos artigos manufaturados e decorados a mão);
2.produções originais de arte estatutária e de escultura em qualquer material;
3.gravuras, estampas e litografias originais;
4.conjuntos e montagens artísticas em qualquer material.
h)manuscritos raros e incunábulos, livros, documentos e publicações antigos de interesse especial (histórico, artístico, científico, literário, etc.), isolados ou em coleções;
i)selos postais, fiscais ou análogos, isolados ou em coleções;
j)arquivos, inclusive os fonográficos, fotográficos e cinematográficos;
k)peças de mobília de mais de cem anos e instrumentos musicais antigos.
Esse documento, depois de afirmar que a cooperação internacional constitui um dos meios mais eficientes para proteger os bens culturais contra os atos de importação, exportação e transferência de propriedade ilícitas , exorta os Estados membros a assumirem vários compromissos para defendê-los, em conformidade com a legislação nacional respectiva.
A definição de bens culturais adotada por essa Convenção, que foi promulgada no Brasil pelo Decreto n. 72.312, de 31 de maio de 1973, serviu mais tarde de referência para a Convenção da UNIDROIT sobre bens culturais roubados ou ilicitamente exportados , de 24 de junho de 1995, assinada em Roma, que entrou em vigor em 1o. de julho de 1998, a qual instituiu as regras mínimas para a restituição, ou retorno e compensação aos Estados de origem, de bens culturais ilicitamente subtraídos ou transacionados.
Em seqüência, no mesmo ano da Declaração de Estocolmo, os bens culturais foram objeto de uma Convenção Internacional relativa à Proteção da Herança Universal Cultural e Natural, firmada em Paris, em 1972, da qual o Brasil foi signatário, com a finalidade de “estabelecer um sistema de proteção à herança cultural e natural de valor universal, organizado de forma permanente e de acordo com os modernos métodos científicos”.
Essa Convenção teve seu texto aprovado no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 74, de 1977, e foi promulgada pelo Decreto n. 80.978, de 12 de dezembro de 1977, com importantes reflexos na conceituação dos bens culturais posteriormente acolhida pela Constituição brasileira promulgada em 1988, alem de propiciar que muitos sítios culturais de nosso país passassem a constituir patrimônio cultural da humanidade , como bem salientou Guido Fernando da Silva Soares (“Direito Internacional do Meio Ambiente”,S.Paulo, Ed.Atlas, 2001, p.133).
Consolidou-se , assim, a internacionalização da questão ambiental, e dos debates que se seguiram nas últimas décadas do século XX nos foros internacionais foi consagrado um novo conceito: o de interesse comum da humanidade, que influenciou a ampliação dos interesses juridicamente tutelados, relacionando-se com outros, próprios do direito internacional, entre os quais o de herança comum da humanidade e o de patrimônio comum da humanidade, que levam em consideração a existência de legítimos interesses difusos da humanidade como um todo, em relação a fatos ou ações que possam afetar a sobrevivência da espécie humana sobre a Terra. Como decorrência, a expressão patrimônio cultural da humanidade , foi adotada no texto de várias convenções e recomendações internacionais para indicar os bens culturais que merecem a atenção da comunidade internacional e que, portanto, devem ser universalmente protegidos.
Entre os inúmeros documentos de proteção internacional, é importante mencionar ainda a Convenção sobre a Proteção da Herança Arqueológica, Histórica e Artística das Nações Americanas ( Convenção de San Salvador), firmada em Santiago, em 1976, não vigente no Brasil mas que recebe deste o apoio, bem como o Tratado para a Proteção das Instituições Científicas e Artísticas e Monumentos Históricos, adotado em Washington no âmbito da antiga União Pan-americana, em 1935.
Por outro lado, a UNESCO emitiu durante toda a segunda metade do século XX, inúmeras Recomendações, destinadas a estabelecer padrões internacionais de proteção a serem seguidos pelos Estados, através de suas próprias leis, bem como a servirem de instrumentos de interpretação das convenções firmadas entre os mesmos. As mais importantes foram aquelas relativas a:
- princípios internacionais a serem aplicados às excavações arqueológicas, em 5 de dezembro de 1956;
- proteção da beleza e do caráter dos lugares e paisagens, em 11 de dezembro de 1962;
- medidas direcionadas a proibir e impedir a exportação, importação e transferência de propriedade ilícitas de bens culturais, em 19 de novembro de 1964;
- conservação de bens culturais que a execução de obras públicas ou privadas possam colocar em perigo, em 19 de novembro de 1969;
- intercâmbio internacional de bens culturais, em 26 de novembro de 1976.
Todos esses documentos e recomendações internacionais , sem dúvida alguma, constituíram a base ou inspiraram as leis de proteção ao patrimônio cultural que se seguiram, nos vários países, como aconteceu na França, com a Lei de proteção ao patrimônio construído , de 1977, a Lei sobre o patrimônio arquitetônico e urbano , de 1983, e o Código de Urbanismo ( Lei 110/83), cujo art. 110 declara que o território francês constitui patrimônio comum da nação.
Também o legislador brasileiro passou a dispensar especial atenção à tutela jurídica integral do patrimônio nacional nos seus dois aspectos referidos: patrimônio natural e patrimônio cultural , sobretudo no âmbito constitucional, com a ampla caracterização feita na Constituição Federal de 1988, que alargou os conceitos tradicionais vigentes até então.
III - O PATRIMÔNIO CULTURAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA.

Seguramente a Convenção de Paris de 1972, que foi promulgada no Brasil pelo Decreto n. 80.978, de 12-12-1977, bem como a anterior de 1970, lançaram as bases para o aperfeiçoamento da noção de patrimônio histórico, cultural e paisagístico que vinha sendo referida nas Constituições brasileiras anteriores, culminando no tratamento que lhe foi dado pela Constituição federal de 1988, que se refere à “proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (art. 24,VII) para estabelecer a competência legislativa concorrente da União, Estados e Distrito Federal. A enumeração decorre da definição de patrimônio cultural estabelecida no seu art. 216, V, que inclui “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.” (Cf. art. 216 CF).
Anteriormente, na legislação brasileira, uma conceituação já havia sido dada no Decreto-lei n. 25, de 30.11.37, que disciplinou o tombamento de bens que constituem o patrimônio histórico e artístico nacional, considerando-o,no seu art. 1o., como “ o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.” Esse conceito já era estendido no parágrafo 2o. desse mesmo artigo, que preceituava: “Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo, e são também sujeitos a tombamento, os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria humana”.
Produziu-se, pois, na atualidade, um alargamento do conteúdo de patrimônio cultural, que alem de englobar esse patrimônio histórico e artístico referido incluiu outros bens que justificam a ampla tutela jurídica que deve ser concedida a todas as espécies que compõem o gênero “patrimônio cultural”.
De fato, a Constituição de 1988 estabeleceu no seu art. 216 que:
“Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações artísticas, científicas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
E dispõe ainda esse mesmo artigo, no seu parágrafo 4o.: “Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.”
Produziu-se então uma identificação valorativa dos complexos de bens que integram o patrimônio ambiental da Nação, em que se conjugam duas categorias: o patrimônio natural e o patrimônio cultural, que se relacionam também com o legado das gerações que nos precederam e que devemos transmitir intactos para as que nos sucederem.
A legislação ambiental que nos vários países se seguiu à Declaração de Estocolmo, nos anos 70 e 80 do século passado, realizando a adoção dos seus princípios no plano interno, numa primeira fase foi caracterizada pela proteção dispensada aos recursos da natureza, diversificados em complexos referidos como patrimônio biológico, genético, rural, florestal vegetal, mineral, etc. No Brasil, a Lei n. 6.938/81 mencionava realizar a tutela legal de bens ambientais naturais, tais como: “a atmosfera, as águas interiores , superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o sub-solo e os elementos da biosfera.”
Numa segunda fase, com a crescente preocupação com os problemas globais relativos à sadia qualidade de vida e a necessidade de conservar o meio ambiente para transmiti-lo às futuras gerações, a legislação brasileira, seguindo a tendência já manifestada em outros países, passou a contemplar também o ambiente construído ou modificado pelo homem nos seus vários aspectos: de saneamento, atividades industriais, transportes, habitação, urbanismo, turismo, lazer e, também, artes e cultura em geral.
Na verdade tornou-se difícil fazer uma separação nítida entre bens que integram o patrimônio natural e os que integram o patrimônio cultural, tal o entrelaçamento entre as duas categorias, promovido pelas próprias leis, como foi, aliás, o caso da equiparação realizada pelo mencionado parágrafo 2o. do art. 1o. do Decreto n. 25/37, disciplinando a possibilidade de seu tombamento.
Igualmente a Lei n. 3.924/61, ao caracterizar os monumentos arqueológicos ou pré-históricos, incluiu os “sítios nos quais se encontram vestígios positivos de ocupação pelos paleoameríndios”, os “locais de pouso prolongado ou de aldeamento”, e outros que se confundem com as áreas naturais.
Na tutela jurídica exercida conjuntamente passou-se a utilizar então a expressão bens naturais e culturais , ou expressões equivalentes. Tal como fez a Lei n. 6.513/77 ao criar as áreas especiais de interesse turístico e os locais de interesse turístico, conceituando aquelas como trechos do território nacional “a serem preservados e valorizados no sentido cultural e natural, destinados à realização de planos e projetos de desenvolvimento turístico”, e estes como trechos que, por sua adequação ao desenvolvimento de atividades turísticas são destinados à realização de projetos específicos, considerando-se de interesse turístico os bens de valor cultural e natural protegidos por legislação específica, entre os quais enumera, no seu art. 1o., os bens de valor histórico, artístico, arqueológico ou pré-histórico, as manifestações culturais ou etnológicas nos locais onde ocorram, as paisagens notáveis, etc.

IV - O PATRIMÔNIO CULTURAL E O DIREITO PENAL.

Depois de afirmar a natureza fundamental do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, e de indicar a necessidade da defesa e preservação desses bens para as presentes e futuras gerações, a Constituição Federal de 1988 enfatiza, no parágrafo terceiro do art. 225 que “as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores , pessoas físicas e jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar o dano.”
Foi, assim, inquestionavelmente recomendada a intervenção penal em todas as questões referentes a atuações lesivas ao meio ambiente, entre elas as que são dirigidas contra os bens que integram o patrimônio cultural, da mesma forma em que essa tutela é reclamada, como ultima ratio da proteção jurídica, para a garantia efetiva de outros direitos humanos fundamentais que a Constituição enumera, atestando a gravidade do problema e a sua importância para o ordenamento jurídico.
A inadequação, porém, da legislação penal para essa missão salvadora do patrimônio cultural evidenciava-se pelas deficiências de suas normas que ou não tinham sido destinadas a essa finalidade específica, como as do Código Penal de 1940, ainda em vigor, ou inexistiam na legislação penal especial não tendo até então ultrapassado nesse campo os confins do Direito Administrativo.
De fato, a Lei n. 3.924/61, que estabeleceu a proteção dos monumentos arqueológicos e pré-históricos, não incluiu qualquer tipificação penal, mas estabeleceu, no seu art. 5o. que: “Qualquer ato que importe na destruição ou mutilação dos monumentos a que se refere o art. 2o. desta lei será considerado crime contra o Patrimônio Nacional e, como tal, punível de acordo com o disposto nas leis penais.” E aduz, no art. 29: “Aos infratores desta lei serão aplicadas as sanções dos artigos 163 a 167 do Código Penal, conforme o caso, sem prejuízo de outras penalidades cabíveis.”
A Lei n. 4.845, de 19-11-65, que “proíbe a saída para o exterior de obras de arte e ofícios produzidos no País até o período monárquico “, também constitui mera limitação à disposição da propriedade móvel através da restrição à sua circulação, que se integra na tutela administrativa do patrimônio cultural.
Igualmente a Lei 7.661/88, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro como parte da Política Nacional do Meio Ambiente, e que estabelece, sem fazer qualquer tipificação penal, que tendo em vista o zoneamento de usos e atividades na zona litorânea, deve ser prioritária a conservação e a proteção não somente dos recursos naturais da área, mas também a dos sítios ecológicos de relevância cultural, bem como a dos monumentos que integrem o patrimônio natural, histórico, paleontológico, espeleológico, arqueológico, étnico, cultural e paisagístico.
Essas lacunas remetiam forçosamente a tutela do patrimônio cultural para o Código Penal, onde, à falta de tipos especificamente ambientais, ficava situada entre os crimes patrimoniais, basicamente entre as várias espécies do delito de dano.
Deixando a figura prevista no art. 163 ( dano simples e forma qualificada) como hipótese subsidiária, restavam apenas as possibilidades dos arts. 165 e 166 para o enquadramento das condutas ofensivas ou danosas aos bens culturais aqui referidos. A primeira, intitulada dano em coisa de valor artístico, arqueológico ou histórico, consistente em “destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pela autoridade competente em virtude de valor artístico, arqueológico ou histórico”,tinha o seu alcance bastante limitado pela referência feita ao tombamento do objeto material do delito, e hoje está revogada pela nova disposição a esse respeito trazida na Lei 9.605/98. A segunda, com o nome de alteração de local especialmente protegido, embora inspirada no modelo italiano que cuida da “alteração de paisagem”, não faz, diferentemente deste, uma menção expressa à qualidade estética do bem jurídico protegido. O legislador brasileiro preferiu falar em “alteração de local”, ao invés de limitar-se à alteração das belezas naturais, o que deu maior amplitude à proteção legal que assim foi oferecida também à paisagem urbana, compreendendo os conjuntos de edificações, ou outras obras acrescentadas pelo homem à natureza, que apresentem valor artístico ou cultural, além de estético.Isso, aliás, ficou bem claro na redação que lhe deu a Nova Lei dos Crimes Ambientais, n.9.605/98, que aprimorou o dispositivo , revogando - o .
Ao dispor sobre o ordenamento urbano e o patrimônio cultural, instituindo a sua tutela, essa lei revogou os citados artigos 165 e 166 do Código Penal, substituindo-os por quatro figuras penais que ampliaram a proteção anteriormente dispensada a esses valiosos bens ambientais.
No art.62 cuida-se da destruição, inutilização ou deterioração de bens de duas categorias diferentes: a primeira refere-se a qualquer bem indistintamente, desde que protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial ( casas tombadas, monumentos históricos, árvores de preservação permanente, sítios de beleza rara, ou até mesmo quadros que estejam tombados); a segunda categoria é constituída por bens expressamente referidos, em que se presume haja interesse público, desde que também estejam protegidos por lei, ato administrativo ou decisão judicial ( arquivo, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar). Identifica-se com o crime de dano do Código Penal, subentendendo a existência de efetiva lesão , a exigir a prova pericial, mas dele discrepa por admitir a forma culposa, quando então pode resultar na transação da Lei 9.099/95, uma vez que a pena máxima é de um ano de detenção. Na forma dolosa, com a pena de 1 a 3 anos de reclusão e multa, admitirá a suspensão, prevista na lei mencionada. Como o sujeito passivo do delito é, em primeiro lugar, a coletividade, até mesmo o proprietário poderá estar incurso na ação típica incriminada, culposa ou dolosamente praticada. Apesar de ser de natureza instantânea, o delito em questão admite tentativa, quanto o agente, por circunstâncias alheias à sua vontade, não consegue destruir, inutilizar ou deteriorar o bem.
O tipo do art. 63, que revogou o art. 166 do Código Penal, dispôs de forma mais ampla e completa o que pretendia, tal seja: “alterar o aspecto ou a estrutura de edificação ou local especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial, em razão de seu valor paisagístico, ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização da autoridade competente ou em desacordo com a concedida.” No conceito, embora não mencionados expressamente, estão incluídos, evidentemente, os sítios de valor paleontológico, relativos aos fósseis, que são também valores culturais, bem como os de natureza espeleológica, que são os relativos a grutas, cavernas e outras cavidades naturais subterrâneas, os quais constituem relevantes ecossistemas.
A pena é agora mais gravosa, de reclusão de 1 a 3 anos e multa, mais condizente com a gravidade da conduta lesiva e as conseqüências que pode provocar, sendo porém passível de substituição por pena restritiva de direitos, conforme o disposto no art. 7o. É ação que pode ser cometida por pessoa jurídica, quando a pena a ser-lhe aplicada poderá orientar-se com vantagem à recuperação ou refazimento das áreas alteradas. A competência para a ação, que é pública, incondicionada, deve ser regulada pela titularidade do bem alterado: se pertencente à União, dela for o tombamento ou a decisão judicial, competente será a Justiça Federal; nas demais hipóteses, a Estadual. É cabível a suspensão do processo, e a reparação do dano será condição básica, segundo dispõe a Lei n. 9.099/95.
No art. 64 a Lei apresenta uma inovação ao punir a construção irregular, em solo não edificável e seu entorno, que antes era infração administrativa, passível apenas de embargo ou demolição: “Promover construção em solo não edificável ou no seu entorno, assim considerado em razão do seu valor paisagístico, ecológico, artístico, turístico, histórico, cultural, religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental, sem autorização ou em desacordo com a concedida. Pena: detenção de seis meses a um ano , e multa.” A autorização da autoridade competente é elemento normativo do tipo, o qual só existe na forma dolosa. A ação, pública incondicionada, será de competência da Justiça Federal se a área protegida pertencer à União, por ela tiver sido tombada, ou se a decisão for de juiz federal. Será imprescindível a prova pericial, e tendo pena máxima de 1 ano de detenção, é admissível a transação prevista na Lei n. 9.099/95. É cabível na sua imputação à pessoa jurídica, segundo o art. 3o. da Lei 9.905/98.
A derradeira figura desse elenco é constituída pela ação de “pichar,grafitar, ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano”, constante do art. 65 da lei ambiental, que comina ao seu autor a pena de detenção de três meses a um ano e multa, sendo porém de seis meses a um ano, alem da multa, se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada, em virtude de seu valor artístico, arqueológico ou histórico, conforme dispõe o parágrafo único do mesmo artigo.
O objetivo aqui é a proteção de edificações comuns e monumentos situados em logradouros públicos ou a céu aberto, como estátuas, bustos, chafarizes, obeliscos e outros marcos, freqüentemente alvos de vandalismo e de ações que os desfiguram ou enfeiam, quando não os danificam irreversivelmente.Embora o conceito de monumento possa também abranger os bens naturais e até cidades inteiras, não são eles os objetos da ação aqui prevista , podendo a sua tutela estar estabelecida em outros tipos penais do mesmo diploma legal.
A ação, que deve ser dolosa,pode ter qualquer objetivo mesmo político ou propagandístico, excetuando-se as manifestações artísticas dos chamados grafiteiros, que não conspurcam mas sim embelezam certas áreas, impedindo mesmo que sejam pichadas. De qualquer forma, tratando-se de infração de menor potencial ofensivo, submete-se ao procedimento da Lei n. 9.099/95, podendo dar margem à uma reparação do dano a ser privilegiada como medida educativa.
Embora sejam apenas essas as hipóteses acolhidas pela Lei ambiental para uma retribuição penal na área da tutela do patrimônio cultural, essas inovações foram significativas para preencher o vazio anteriormente existente no âmbito legislativo para a proteção dessa espécie de bens jurídicos. O seu aperfeiçoamento, porém, seria oportuno uma vez que muito ainda resta a disciplinar , notadamente em matéria de ordenamento urbano, para o qual a lei parcimoniosamente reservou apenas um artigo.
Na verdade, a tutela do patrimônio cultural tem sido considerada por todos os Anteprojetos de reforma da Parte Especial do Código penal já apresentados e paralisados à espera da vontade política de acolhe-los. O Anteprojeto de 1984, de notáveis juristas, já previa diversas figuras num Capítulo referente aos “Crimes contra a memória nacional”, que incluía a falsificação de bens culturais e outras condutas assemelhadas, além de uma especial tipificação de atentado contra a paisagem. No Anteprojeto apresentado em 1999, sem que houvesse qualquer referência ao interesse ambiental, introduzia-se um Título reservado à proteção do ordenamento urbano, em que os crimes previstos eram os de incorporação indevida, fraude imobiliária, infidelidade gerencial, parcelamento clandestino ou irregular do solo urbano, fraude em parcelamento do solo urbano e licença ilegal.
A questão da ocupação do solo e do ordenamento urbanístico, todavia, não está desvinculada da tutela ambiental baseada na qualidade de vida dos cidadãos, na estética da paisagem e nas elementares medidas sanitárias que promovam o desenvolvimento sustentado das cidades mas também a preservação de interesses públicos vitais, como o do meio ambiente sadio e equilibrado.
Igualmente o comércio ilícito de bens culturais está a merecer maior atenção dos legisladores e cultores do direito, pois as disposições existentes a respeito são frágeis e lacunosas, mesmo no direito penal internacional, não impedindo eficazmente nem a exportação nem a importação de bens roubados ou adquiridos ilicitamente em verdadeiras pilhagens, nacionais ou internacionais.
Paralelamente às iniciativas de cunho legislativo, uma política de preservação do patrimônio histórico e arquitetônico, cultural e ambiental deveria ser intensificada no sentido de promover a recuperação das áreas urbanas degradadas, a restauração dos monumentos e fachadas, a adaptação de letreiros e anúncios objetivando a despoluição visual, o melhoramento dos logradouros públicos, a limpeza das pichações nos edifícios públicos e nas vias públicas, tudo visando a proporcionar a qualidade ambiental que desejamos para nós e para as futuras gerações, dando cumprimento às determinações constitucionais e às recomendações internacionais, preservando a natureza que nos cerca mas também velando pela conservação dos bens culturais, que constituem a nossa memória e a nossa identidade no espaço que ocupamos no mundo.

Fonte:
Dra. Ivette Senise Ferreira
Professora Titular de Direito Penal da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Membro da IUCN – Inrternational Union for the Conservation of Nature.

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